Integrante da Comisso Permanente de Assessoramento em Imunizaes do Estado de So Paulo, Guido Levi conta que no incio dos anos 2000 foi chamado por um grupo de residentes em uma enfermaria de doenas infecciosas em So Paulo. Os jovens mdicos estavam intrigados que nenhum exame proposto havia detectado a causa de erupes cutneas e febre alta que haviam levado uma criana internao."Ningum sabia o que era. Os residentes disseram que iam apresentar os exames pedidos, que ainda no tinham resultados positivos, e eu falei: 'Gente, no precisa de exame nenhum. Isso sarampo'. Eles ficaram muito desconfiados, porque nunca tinham visto sarampo", lembra Guido Levi.
O sucesso da imunizao fez com que boa parte da populao e at mdicos esquecessem que o sarampo uma doena grave e letal. Segundo o Ministrio da Sade, uma em cada 20 crianas com sarampo pode desenvolver pneumonia, que a causa mais comum de morte por sarampo na infncia. Alm disso, cerca de uma em cada dez crianas com sarampo desenvolvem uma otite aguda que pode resultar em perda auditiva permanente. A Organizao Pan-Americana da Sade (Opas) estima que, de 2000 a 2017, a vacinao contra o sarampo evitou cerca de 21,1 milhes de mortes, tornando a vacina um dos melhores investimentos em sade pblica.
"O sarampo era uma das doenas mais graves que acometiam a infncia e uma das que causavam maior mortalidade. Quando fui consultor do Hospital Infantil da Cruz Vermelha Brasileira, em So Paulo, no comeo da dcada de 1980, metade do hospital era tomada por crianas com sarampo, e com altssima mortalidade", lembra Guido Levi, que viu as vacinas transformarem esse cenrio.
A imunizao conseguiu eliminar essa doena no apenas do Brasil, mas de todo o continente americano, o que foireconhecido pela Opas em 27 de setembro de 2016. Na poca, a organizao lembrou que o sarampo chegou a matar 2,6 milhes de pessoas por ano no mundo antes da dcada de 1980. Para se ter uma ideia do que esse nmero representa, ele maior do que o total de vtimas da covid-19 no primeiro ano de pandemia.
A vacinao contra o sarampo no Programa Nacional de Imunizaes (PNI), que completa 50 anos em 2023, se d por meio das vacinas trplice viral e tetra viral. A primeira aplicada quando a criana completa o primeiro ano de vida, e protege contra sarampo, caxumba e rubola. J a segunda indicada para os 15 meses de vida, com ao menos 30 dias de intervalo aps a trplice viral.
Na tetra viral, alm das trs doenas da trplice, a proteo inclui a varicela, causadora da catapora na infncia e da herpes zoster na vida adulta. Quando a tetra no estiver disponvel no posto, ela pode ser substituda por uma dose da trplice viral e uma dose da vacina varicela monovalente.
Risco permanente
A coordenadora da Assessoria Clnica do Instituto de Tecnologia em Imunobiolgicos da Fundao Oswaldo Cruz (Bio-Manguinhos/Fiocruz), Lurdinha Maia, destaca que a percepo de que o sarampo uma doena grave no pode se perder, porque somente a vacinao em altas coberturas pode impedir que o alto nvel de mortalidade retorne.
“A viso que se tem da gravidade de uma doena muito importante. O sarampo no uma doena trivial. A cada mil crianas, pode haver at 3 mortes. Pode haver encefalite, otite, pneumonia”, destaca ela. “Houve uma queda de 80% nas mortes por sarampo entre 2000 e 2017 no mundo. Em 2017, 85% das crianas do mundo receberam uma dose da vacina contra o sarampo no primeiro ano de vida. Mas uma nica dose no interrompe a circulao e no d a proteo necessria. E a gente precisa cumprir a meta de 95%.”
O sarampo tambm uma doena que pode causar sequelas severas. A superintendente de prticas assistenciais da AACD, Alice Rosa Ramos, cita que crianas e adultos podem permanecer com grandes comprometimentos visuais, auditivos, intelectuais e fsicos aps um quadro de sarampo.
“So crianas que vo precisar ser cuidadas ao longo de toda vida. A plio causa a paralisia flcida, que o msculo atrofiado, mas molinho. Mas, tanto no sarampo como na meningite, a gente tem uma leso cerebral. Ocorre um aumento do tnus muscular, causado por uma leso central, com msculos muito tensos, que fazem a pessoa entrar em vrias deformidades”, compara ela, que detalha: “Na viso, posso ter desde a baixa de viso at a cegueira total. Da mesma forma que no intelecto, que posso ter crianas que entendem um pouco ou que deixam de entender absolutamente tudo. E isso pode afetar um adulto tambm.”
Prevenvel h dcadas
A vacinao contra o sarampo no Brasil foi iniciada em 1967, e a preveno contra a doena j fazia parte do primeiro calendrio bsico de imunizao dos menores de 1 ano de idade, institudo dez anos depois. Altamente transmissvel, essa virose levou quase 60 anos para ser considerada eliminada do pas, com o sucesso da imunizao, mas apenas dois anos de baixas coberturas vacinais permitiram que ela voltasse, em 2018. Para especialistas em vacinao, esse retorno um exemplo concreto de que no se pode relaxar com a preveno s doenas imunoprevenveis.
Para a consultora da Opas e ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizaes (PNI), Carla Domingues, necessrio um trabalho forte de comunicao para que a populao volte a reconhecer os riscos de no se vacinar e de no vacinar seus filhos.
"Bastaram dois anos para o pas ter surtos importantes, virar endmico e perder a certificao de pas livre do sarampo. algo que pode acontecer com a plio. Tambm podemos voltar a ter surtos de difteria, meningite, coqueluche. Apesar de no vermos mais essas doenas, se deixarmos de vacinar, elas voltaro a ser problemas de sade pblica."
Os riscos que esse problema pode causar vo alm do adoecimento das prprias pessoas infectadas por esses vrus e bactrias, explica Carla Domingues. Como a pandemia de covid-19 mostrou, surtos de uma doena foram os servios de sade a destinar recursos humanos e fsicos ao tratamento dela, o que pode prejudicar outros pacientes.
"Se hoje ns temos leitos para cuidar de acidentes de trnsito e para cuidar de doenas no transmissveis como cncer e diabetes, porque a gente no tem mais esses leitos sendo utilizados para doenas imunoprevenveis. Se a gente voltar a ter surtos dessas doenas, teremos um esgotamento do servio de sade, como o exemplo que a gente acabou de ver com a covid-19, em que doenas deixaram de ser tratadas porque precisvamos tratar a covid-19."
Esquema de duas doses
A vacinao contra o sarampo sofre de um problema comum a vacinas cujo esquema vacinal requer mais de uma dose: a baixa na adeso. Em 2018, quando o sarampo voltou a causar surtos no pas, a primeira dose da trplice viral havia chegado a 92% das crianas, perto da meta de 95%. A segunda dose, porm, teve uma cobertura de apenas 76%.
A taxa de proteo era ainda pior na regio amaznica, justamente onde o surto comeou. No Amap, apenas 64% receberam a segunda dose naquele ano, e, no Par, o percentual foi de 60%.
A presidente da Sociedade Brasileira de Imunizaes, Mnica Levi, refora que, alm de atingir a meta, preciso garantir que o resultado seja homogneo. Isto : que todos os estados e municpios ao menos se aproximem do percentual desejado.
"A gente no pode ter nichos localizados de no vacinados. Se no se pe tudo a perder. Tem que ter homogeneidade. Todos os locais tm que ter cobertura minimamente alta para que o pas fique protegido", argumenta ela, que explica que o vrus consegue furar o bloqueio e entrar se um grupo especfico no estiver protegido. "No uma preocupao s com equidade social. claro que isso importante. Mas, se voc largar um grupo para trs, a doena vai trazer riscos para todo mundo."
Ainda em 2019, o problema da falta de homogeneidade havia sido diagnosticado pelo Ministrio da Sade, que apontou que, dos 5.570 municpios brasileiros, 2.751 (49%) no atingiram a meta de cobertura vacinal contra o sarampo em 2018. No Par, 83,3% dos municpios no haviam atingido a meta; em Roraima, 73,3%; e no Amazonas, 50%.
Surto
O surto de sarampo que teve incio na regio amaznica rapidamente se espalhou entre diversos estados. Em apenas um ano, o Brasil saltou de zero caso para mais de 10 mil, ainda concentrados principalmente no Amazonas, Roraima e Par. No ano seguinte, 2019, o nmero de casos dobrou, para 20 mil. Naquele ano, So Paulo ou a ser o centro do surto de sarampo.
Nos anos seguintes, o surto perdeu fora, mas a doena continua a circular no pas. Em 2020, foram confirmados 8.448 casos e, em 2021, 676. Apesar disso, o Observatrio de Sade na Infncia (Observa Infncia), projeto da Fiocruz e da Faculdade de Medicina de Petrpolis (FMP/UNIFASE), mostra que a doena causou em 2020 o maior nmero de vtimas infantis no Brasil em quase duas dcadas: foram dez mortes abaixo dos 5 anos. Entre 2018 e 2021, o nmero de mortes nessa faixa etria chegou a 26.
A coordenadora do Observa Infncia, Patrcia Boccolini, ressalta que haver uma nica morte por uma doena que j pode ser prevenida h tanto tempo j uma tragdia.
“Mortes infantis por sarampo podem ser evitadas com uma estratgia simples e consolidada no SUS: a vacinao”, aponta.
“Isso tem que ser sempre lembrado para a populao, porque essa nova gerao que tem filhos agora uma gerao que no viu toda a gravidade do sarampo, da plio e de outras doenas que j foram controladas pelas coberturas vacinais. Elas no tm essa percepo de risco, porque a grande maioria foi vacinada. No vemos mais pessoas com sequelas nas ruas.”
A pesquisadora avalia que tudo indica que o pas caminha para controlar novamente o sarampo. Em 2022, foram 44 casos confirmados da doena, e, em 2023, ainda no h novos registros de diagnsticos confirmados.
“A gente est no caminho e tudo indica que houve um controle, porque no tivemos nenhum caso no ano de 2023. Porm, a gente continua ainda com baixas coberturas vacinais, apesar de todos os esforos do novo governo e da nova ministra. Isso um sinal de alerta. Por mais que no esteja circulando, temos baixas coberturas e isso um ambiente propcio para um caso importado que possa chegar aqui. O sarampo extremamente contagioso. Para a gente conseguir o nosso selo novamente de pas livre do sarampo, temos que esperar um pouco mais para ver se a situao vai se manter.”
Em entrevista exclusiva Rdio Nacional, a ministra da Sade, Nsia Trindade, explicou que os surtos de sarampo que o Brasil voltou a registrar foram controlados, mas que o risco permanece enquanto a imunizao no for recuperada.
"Para a reduo do risco em relao ao sarampo ns temos que alcanar a cobertura que o pas j teve, de mais de 90%. O que temos que fazer nesse momento levar a vacina para a populao e sensibilizar para que ela seja aplicada."